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Neuropsicanálise e Psicofármacos: Entre a Palavra e a Química do Cuidado


Em nossa prática pastoral e clínica, temos nos deparado, cada vez mais, com a realidade do sofrimento humano em sua expressão mais densa: ansiedades avassaladoras, depressões silenciosas, impulsos autodestrutivos, traumas de infância que insistem em assombrar a vida adulta. Diante de tamanha complexidade, muitos pastores, terapeutas e psicanalistas se perguntam: é possível cuidar da alma apenas com a escuta? Ou seria necessário recorrer, em alguns casos, ao auxílio dos psicofármacos? E mais: o que a neuropsicanálise tem a nos dizer sobre essa tensão entre o simbólico e o biológico?


Como Teólogo e Psicanalista, compartilho aqui uma reflexão que brota da escuta do sofrimento, mas também da busca por um cuidado ético e integral, que una fé, ciência e humanidade. Nossa tarefa não é escolher entre mente e cérebro, mas escutar o sujeito em sua totalidade, com coragem, compaixão e discernimento.


O que é Neuropsicanálise?


A neuropsicanálise nasceu de um reencontro entre duas tradições que, embora tenham nascido juntas na figura de Freud (médico neurologista), tomaram rumos distintos ao longo do século XX: a psicanálise e a neurociência. Essa nova abordagem busca dialogar com os avanços das neurociências afetivas e cognitivas, sem abandonar o núcleo fundamental da escuta psicanalítica: o inconsciente, o desejo, a subjetividade.


Mark Solms, um de seus principais representantes, propõe que podemos compreender os processos inconscientes também como fenômenos neurobiológicos. Ou seja, o inconsciente não é um mistério metafísico, mas uma dimensão real da vida psíquica que se enraíza no corpo, no cérebro, nas emoções mais profundas.


Entretanto, é preciso cuidado: a neuropsicanálise não busca reduzir a psique ao funcionamento cerebral. Seu esforço é de integração, não de subordinação. Ela reconhece que há experiências que só podem ser compreendidas pela linguagem, pela história, pela dor que insiste em retornar. O cérebro, nesse sentido, é o palco – mas o drama é da alma.


Psicofármacos: vilões ou aliados?


A medicalização do sofrimento tem crescido de forma preocupante. Para cada tristeza, um antidepressivo; para cada angústia, um ansiolítico; para cada criança inquieta, um estabilizador de humor. Vivemos em uma sociedade apressada, que não quer escutar o grito silencioso do sujeito e prefere calá-lo com pílulas.


No entanto, também seria irresponsável ignorar o valor dos psicofármacos em muitos casos. Quando bem indicados, por um psiquiatra sério e comprometido, eles podem ser o primeiro passo para que o sujeito tenha condições mínimas de reorganizar sua vida psíquica. Em crises psicóticas, episódios depressivos profundos ou transtornos de ansiedade paralisantes, o medicamento pode ser o que evita o suicídio, o colapso, o desamparo absoluto.


Mas o psicofármaco, por si só, não cura a dor da alma. Ele pode aliviar sintomas, mas não ressignifica traumas, não devolve sentido à vida, não reconcilia o sujeito com sua história. Por isso, deve ser sempre acompanhado de escuta, de acompanhamento terapêutico, de vínculos humanos e espirituais significativos. A química pode abrir o caminho, mas é a palavra que constrói a travessia.


A escuta do corpo e o corpo da escuta


Um dos grandes méritos da neuropsicanálise é nos lembrar que a escuta analítica também é corporal. Os afetos que emergem no divã não são apenas ideias ou pensamentos, mas sensações encarnadas: um aperto no peito, uma respiração que falha, um estômago que se fecha diante de lembranças dolorosas. Freud já intuía isso ao falar dos "histerismos", mas agora a ciência oferece instrumentos para compreender melhor esses processos.

Por outro lado, os psicofármacos nos mostram que há vezes em que o corpo não responde apenas à palavra. Há desequilíbrios bioquímicos reais que exigem intervenção medicamentosa. Isso não invalida a psicanálise, apenas nos ensina que o sujeito é feito de carne e símbolo, de neurônios e memórias, de sinapses e significados.


Uma clínica ética e integrada


O que se espera de um terapeuta, especialmente de um psicanalista com sensibilidade pastoral, não é que ele tenha todas as respostas, mas que ele caminhe ao lado do sujeito em busca de sentido. Isso significa, em alguns momentos, acolher o uso do medicamento com responsabilidade, sem preconceito, mas também sem delegar à farmacologia a tarefa de curar o que só a escuta pode tocar.


Quando o sofrimento é grande demais, o psicofármaco pode ser uma tábua de salvação. Mas ele não substitui o trabalho de elaboração simbólica. A cura, se existe, é sempre uma reconstrução do sujeito – e essa reconstrução é feita na palavra, no vínculo, na fé.


Em nossa prática pastoral, isso exige ainda mais cuidado. Muitas vezes, os fiéis se sentem culpados por tomarem remédios, como se isso fosse sinal de fraqueza espiritual. É nosso papel, como líderes e cuidadores, desmistificar essas ideias. A fé em Cristo não nega a ciência, e os remédios, quando usados com sabedoria, podem ser instrumentos da graça de Deus.


Conclusão: um cuidado encarnado


A neuropsicanálise, quando bem compreendida, nos ajuda a superar dicotomias inférteis. Não se trata de escolher entre alma e corpo, entre espírito e cérebro, entre fé e ciência. Trata-se de cuidar do ser humano em sua totalidade, reconhecendo que cada um carrega em si uma história, uma estrutura biológica, uma fé que sustenta, um inconsciente que grita, uma subjetividade que deseja ser escutada.


Os psicofármacos não são vilões, mas também não são salvadores. São instrumentos. O verdadeiro cuidado é aquele que respeita o tempo do sujeito, sua complexidade, sua dor e sua esperança. Em muitos casos, será a escuta analítica que abrirá caminho para que o medicamento cumpra sua função sem se tornar um vício ou um substituto da fala. Em outros, será a palavra de consolo, o olhar pastoral, a presença orante que conduzirá o fiel à reconciliação com sua história.


Que possamos, como pastores e terapeutas, oferecer este cuidado encarnado: que acolhe a dor sem reduzi-la, que busca o sentido sem pressa, que integra ciência e fé, cérebro e coração, palavra e silêncio.

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